A primeira coisa que notei foi que a proporção de pessoas usando tecnologia aqui era diferente do último lugar que visitei. A maioria das pessoas aqui em Ybyté acessa tecnologia por meio do governo, seguida pelos políticos, e depois pelos ricos. Apenas alguns entre os pobres têm algum acesso à tecnologia.
Curiosamente, a magia também não impede as pessoas daqui de usarem tecnologia. Na verdade, elas dependem muito dela, embora a magia também seja usada com frequência. Às vezes sinto que aqui a mistura de magia e tecnologia parece ainda mais natural do que em outros lugares.
A ilha era praticamente normal, exceto por duas coisas:
Primeiro, havia “a fenda”: um imenso desfiladeiro que dividia a ilha em duas partes. Os moradores locais dizem que ainda há aqueles que vivem lá embaixo.
A segunda coisa é o endyobeté. É uma palavra incomum, tão raramente falada que até mesmo mencioná-la parece aterrorizar as pessoas.
Foi difícil descobrir o que era isso, já que os locais nem sequer ousavam mencionar. Mas consegui encontrar informações no porto, vindas de estrangeiros. Aqui está a história por trás do endyobeté:
Endyobeté significa luz azul, e é um cogumelo com o tom mais bonito de azul, quase ciano. No passado, esse cogumelo fazia parte da vida cotidiana em Abaetama, de onde originalmente vieram os ybytégûaras. Então algo mudou—dizem que esse cogumelo causou uma infecção tão aterrorizante que muitos fugiram para esta ilha, criando uma diáspora aqui. Quando chegaram, descobriram que já havia pessoas vivendo no subsolo. Ninguém jamais viu essas pessoas de fato, mas acredita-se amplamente na existência delas—e todos estariam infectados pelo Endyobeté.
Como sou curioso, tentei encontrar um caminho para descer até a fenda, mas nunca consegui. Havia três grandes problemas. Primeiro: o desfiladeiro era tão profundo que não conseguíamos ver muito do fundo: consegui distinguir algumas construções lá embaixo, mas estava escuro demais para perceber qualquer coisa além das formas gerais delas. Segundo, embora o desfiladeiro em si fosse estreito, seu fundo era largo; se de alguma forma conseguíssemos descer até lá, ficaríamos pendurados sobre um espaço aberto, o que não é exatamente seguro. Terceiro, apenas chegar tão perto do desfiladeiro já era considerado um crime em si, embora eu tenha arriscado mesmo assim. Tentar descer ou cruzar para o outro lado da ilha era estritamente proibido, para a segurança de todos aqui. Até mesmo tentar entrar no desfiladeiro era punível com a morte, já que isso colocaria em risco todos os habitantes da ilha.
Parece meio decepcionante falar tanto e não mostrar nada, então exploro a região ao redor da fenda. A fauna e flora eram exuberantes e diferentes do resto da ilha.


Havia uma árvore que cresce a uma altura tão impressionante que existem várias lendas locais sobre ela. Alguns dizem que essa árvore, chamada Ybytérapó, é uma antena viva (porque sua copa se eriça de folhas iridescentes que brilham com runas tênues e cambiantes).
Outros dizem que não é uma árvore de verdade, mas sim os restos do esqueleto de algo antigo, anterior à fundação de Abaetama, transformado em madeira viva por um antigo feitiço.
Dizem também que as raízes chegam tão fundo que teriam tocado diretamente o brilho azul da fenda abaixo, absorvendo mais do que apenas água. Entre os locais existe um mito: sussurram que em certas noites, quando as duas luas estão altas e a névoa sobe da fissura, é possível ver veias azuladas pulsando ao longo da casca: é a luz do endyobeté passando pelo coração da árvore.
Viajantes de passagem pela região recusam-se a acampar perto de sua sombra.
Os anciãos alertam que os sonhos tornam-se estranhos e vívidos aqui: visões de cidades submersas em radiância azulada, multidões com olhos luminosos reunidas entre bosques de cogumelos e canções entoadas numa língua esquecida por todos na superfície. Alguns acreditam que esses sonhos são mensagens daqueles que habitam abaixo—os infectados—tentando atrair pessoas para baixo ou talvez pedir ajuda.
Apesar de assombrados, às vezes as crianças escapam ao entardecer para recolher folhas caídas do Ybytérapó. Dizem que elas carregam uma carga fraca; se você segurar uma perto do ouvido em uma noite silenciosa, pode ouvir sussurros em uma língua esquecida ou vislumbrar luzes azuis cintilantes flutuando lá embaixo. Nenhum adulto admite fazer isso hoje em dia, com medo de desaparecer.
O que mais me impressionou foi como essas histórias se misturam perfeitamente à cultura local. A tecnologia do governo é repleta de símbolos inspirados nos desenhos entalhados do Ybytérapó; políticos usam amuletos feitos de seus galhos para dar sorte… ou proteção. E, vez ou outra, algum oficial desaparece silenciosamente depois de fazer perguntas demais sobre o que existe lá embaixo.
Mas talvez o mais revelador seja que, por mais que a tecnologia avance em Ybyté, ninguém jamais inventou uma luz forte o bastante — ou corajosa o suficiente — para atravessar até o fundo da fenda e revelar o que realmente brilha lá embaixo.